"Os Educadores-sonhadores jamais desistem de suas sementes,mesmo que não germinem no tempo certo...Mesmo que pareçam frágeisl frente às intempéries...Mesmo que não sejam viçosas e que não exalem o perfume que se espera delas.O espírito de um meste nunca se deixa abater pelas dificuldades. Ao contrário, esses educadores entendem experiências difíceis com desafios a serem vencidos. Aos velhos e jovens professores,aos mestres de todos os tempos que foram agraciados pelos céus por essa missão tão digna e feliz.Ser professor é um privilégio. Ser professor é semear em terreno sempre fértil e se encantar com acolheita. Ser professor é ser condutor de almas e de sonhos, é lapidar diamantes"(Gabriel Chalita)

Translate - Tradurre - Übersetzen - Çevirmen - переводчик -

sábado, 27 de setembro de 2008

Trecho de Mulheres de Aço e de Flores,

de Fábio de Melo


A COSTUREIRA


Ando tão apertada de costura que se o dia tivesse vinte e cinco horas ainda sobrariam três ou quatro botões para pregar. Essa vida anda depressa demais. Quando menos imagino, o dia já se foi, esse desaforado!Vivo para ajeitar as mulheres. Prepará-las para ocasiões. São jantares, casamentos, formaturas. Vivo para ajudar a esconder os defeitos. A gordura localizada, a estria, a celulite. Em situações mais raras, saliento as virtudes.Adelaide Moura não costura com nenhuma outra pessoa porque só eu sei esconder aquele culote. Branca Rodarte não dá um passo para fora de casa se a roupa que estiver vestindo não tiver saído da minha máquina. É quase uma ciência a forma com que disfarço a sua falta de seios. Um enchimento aqui, outro enchimento ali. O tecido socorrendo a ausência de carnes. O que falta em umas sobra em outras. Lídia Boaventura costura comigo por uma razão contrária à de Branca. Nela, a natureza resolveu sobrar generosa. Cores e tecidos a serviço da ação clandestina. Mundo esquisito, meu Deus!Helena Sobreira não sabe o que fazer com tanta carne. A única cor que lhe cai um pouquinho melhor é o preto. Parece uma viúva eterna. Eu me exercito no ofício de costurar tecidos desde os dezesseis anos de idade. Herdei o dom de minha mãe, que por sua vez herdou o dom de minha avó. Uma ancestralidade!Fazer roupas é um jeito de ver os bastidores dos acontecimentos. Enquanto todo mundo vê a roupa por fora eu vejo é por dentro, nos seus avessos. O que vejo do tecido é sua sustentação primeira, sua trama. Um tecido só é bonito de verdade à medida que possui um avesso que o sustenta. A beleza externa só tem sentido porque há um alicerce no contraponto. Interessante, mas as pessoas são semelhantes aos tecidos. Se não há uma trama de sustentação não há beleza que possa sobreviver aos desmandes do mundo.Rosélia Adamastor nunca foi feliz. Talvez tenha sido a mulher mais bela que a nossa pequena cidade tenha conhecido. Mas a sua beleza não repercutiu na sua alma. Não foi o suficiente para lhe fazer feliz. Faltou um avesso de tramas resistentes. É estranho. Já Eliodora Fernandes sempre foi de uma feiúra de dar dó na gente. Mas o interessante é que nunca faltou um sorriso naquela criatura. O avesso foi bem feito. Mulheres por dentro e por fora. Mistérios que me despertam coragem para continuar costurando. Minha máquina é minha realidade. É dela que parto para os meus sonhos. O que materialmente corto, ajunto e costuro, de alguma forma repercute dentro de mim. Eu toco constantemente os bastidores da vida. E é a partir desses avessos que construo pontes que me levam para outros mundos.Eu costuro a realidade com linhas de sonhos. Imagino. E no ato de imaginar sou retirada para dançar, repito a sobremesa, comento a elegância dos adornos; troco olhares com o garçom. Rodopio enquanto danço pelo salão; recebo elogios pela escolha do penteado, a seda do vestido. Tudo isso sem sair de minha máquina. As linhas que entrelaçam os tecidos suturam o meu coração a realidades inexistentes. E por isso sou especialista em ver além das aparências. Sei do que os tecidos são capazes e as viagens que proporcionam. Se não tivesse essa habilidade não me restaria muita coisa. A vida na castidade, o corpo preservado, as pernas sem destinos, os cabelos sem fitas, o pescoço sem colares. A vida na mais perfeita e absoluta normalidade. Nem um risco no calendário, nenhum dia convidado a sair do esquecimento; nenhum convite pregado na geladeira, nada que anuncie um sábado com aspecto de primavera: horário marcado no salão, atenção especial para um corte de vestido, retoque de tinta no sapato de ocasião.Eu viajo é nas cores dos tecidos. Quilômetros e quilômetros de linhas me levam pelo mundo afora. O meu porto é a minha máquina. Nela eu sacramento partidas que não terminam nunca. Aprendi muito cedo que o sonho é mais que a realidade.No sonho, o cruel se desfaz com a mudança de foco. É simples. É só deixar de pensar. Se a paixão não convém é só trocar a cara. Fácil de resolver. A imaginação permite retoque, mudanças constantes.De Belo Horizonte a Paris eu levo um segundo. Não pago passagem, nem tenho problema com excesso de bagagem. Eu vou leve. Esqueço as roupas. Volto pra buscar. Troco a cena.Mudo o clima.Faço vir a chuva para dormir logo. Solicito o sol para o meu mergulho e imagino a neve para amenizar o calor. Acendo lareiras nas noites frias; encontro a promissória perdida; ganho na loteria, e divido o prêmio com os pobres.Na angústia, adio a decisão. Na agonia, antecipo o fim. Na alegria, eu prolongo o início. O tempo não tem poder sobre minha velha máquina de costura. Ela o desafia constantemente. Desafio que demonstra intimidade, parceria. Minhas pernas não andam, mas chegam. Chegam aos lugares que aos sonhos pertencem.O homem amado, o amor miúdo de toda hora, a espera no portão, o medo de que ele se atrase e que desista por vergonha, que não mande recado. Medo de que a espera fique superior ao tempo reservado para as esperas que se confundem com a alegria.A casa sem número ainda em construção. A planta discutida; o desejo partilhado de uma varanda que nos proporcione uma visão do outro lado da rua. O lugar não habitado, clandestino, iluminado por um poste de madeira. Os insetos voando em movimentos circulares, tais como os amantes ao redor de suas esperanças. Coisas pequenas que nos fizessem reviver os encantos dos tempos já idos, vividos, ancorados nos porões da memória, dos dias em que a vida era acontecimento certo, rotina garantida, panos estendidos à espera de corte.Eu não sei viver de outro modo. Quando quis a realidade, ocorreu-me a solidão e o despreparo. Vi o tecido da vida se desprender de minhas mãos, e com ele a minha habilidade. E naquele dia, o vestido de Eliane Vieira não ficou pronto a tempo da ocasião para a qual ela o havia solicitado.O choro incontido o dia inteiro, a dor na alma, o inchaço nos olhos, a pouca visão. O fogão de quatro bocas com os cozidos de minha preferência permaneceu intacto. Rosalinda não ousou perguntar a razão da tristeza. Apenas anunciou que já estava indo e que se precisasse eu saberia onde encontrá-la.A noite com suas demoras parecia despencar as estrelas sobre o teto do meu abrigo. A dor tinha cheiro de hortelã. Não sei a razão. Tristeza nem sempre tem razão. Apenas dói com seus cheiros estranhos.As dores da infância tinham cheiro de dama-da-noite. A pequena planta ficava na beirada da porta da cozinha. A mesma porta sempre entreaberta para que meu pai pudesse entrar em casa depois de suas aventuras, quando a madrugada já era a dona do mundo.Não tê-lo em casa causava um imenso arrocho no meu coração. Boca seca, descompasso na fala, olhos curiosos, mãos sem lugar, sem coragem de pegar o rosário para uma oração que preservasse meu pai da infidelidade.A cama estendida, os lençóis intocados, a vida seguindo o curso de sua passagem. As horas, os minutos, os segundos, o tempo.O silêncio vez ou outra era quebrado de forma sutil por um movimento de mulher que esperava. Vinha do quarto de costuras. O barulho da máquina de minha mãe era tão manso quanto suas alegrias. Eu tantas vezes quis sair do quarto, crescer no tamanho e na coragem, vestir um vestido de mulher adulta, tomar minha mãe pelos braços, abrir a porta da sala, acender um cigarro, e esbravejar com voz de quem já havia vivido duzentos anos. – Vamos buscar aquele vagabundo na rua! –. Sentia-me imensa por dentro, mas o corpo só tinha 8 anos. Queria resgatar minha mãe de sua espera torturante, mas eu ainda não era capaz de amarrar os meus sapatos sozinha.Num certo dia de agosto, quando os cães enlouquecem de tanto calor, a porta da cozinha amanheceu entreaberta. Sentada em sua máquina, minha mãe viu que o dia havia amanhecido sem que seus ouvidos tivessem ouvido o bater de porta que nos aliviava a existência.Sozinha no meu quarto eu havia acompanhado a vigília da espera. Quando coloquei a minha cara na porta da cozinha, pela primeira vez pus minha atenção na profundidade que havia no cheiro da hortelã.Manoel Carreira estava chegando pelos fundos, gritando pelo nome de minha mãe. A notícia foi dada sem rodeios: meu pai estava morto.Desde então, minha mãe iniciou-me no ofício de costurar tecidos. Ensinou-me os segredos das texturas e das cores. Foi com redobrada atenção que me ensinou a puxar da máquina, juntamente com as linhas dos carretéis, as linhas dos sonhos. Ela dizia: – Tem de enxergar o que a cliente quer! Ajude a transformar o sonho em realidade! –, insistia.E foi assim que o sonho se tornou a minha realidade. Quando minha mãe morreu, eu já acumulava 26 anos. Ao chegar em casa, depois do sepultamento, entrei em seu quartinho de costura. Ainda havia carretel de linha colocado na máquina. Um pedaço de tecido azul marinho estava cortado, pronto para a costura. Um outro pedaço de tecido branco estava riscado como detalhe para a gola, pronto para o corte. Um paletó de mulher, eu percebi. O paletó que estava fazendo para ela mesma. Os aviamentos; pequenas amostras de sianinhas estavam colocadas ao lado do tecido. Intuí que a escolha ainda não era definitiva. Dois modelos de botões também estavam reservados. Já era fim de tarde. A dama-da-noite começava a demonstrar que existia. Sentei-me na máquina e pus-me a fazer aquele paletó de mulher. Uma costura a quatro mãos. Mãos vivas, mãos mortas. O que ela havia começado eu resolvi terminar. Cumplicidade só possível aos que amam sem os limites do tempo. Um paletó que seria usado em ocasiões simples. Missa das 6 da manhã. Mesmo no verão o vento era frio naquela hora. Uma visita ao Santíssimo Sacramento nas noites de quinta-feira, ou até mesmo as pequenas comemorações do grupo da terceira idade.Enquanto costurava, pude experimentar a minha dor com todas as suas conseqüências. – Já não há razões para este paletó! –, pensei. Já não há mais o corpo que iria vesti-lo. Os dois pequenos bolsos não aquecerão as mãos calejadas de tesoura e agulhas. As mãos desaprenderam de ser vivas. Já não movimentam o risco, o molde, o corte e a fechadura da porta.Algumas horas depois escolhi os botões. Decidi com segurança pelo que tinha detalhes de flores delicadas. Senti-me orgulhosa por conhecer os gostos de minha costureira favorita.Quando dei por mim a noite já estava avançada em horas. O tempo em que durou o meu ofício partilhado não pertenceu à natureza do tempo que passa. Pude notar em mim algo superior. A costura daquele tecido extrapolou a materialidade. Ela foi além. Atingiu também a minha alma. Costurou-me de forma definitiva às mãos que me fizeram mulher, ao ventre que me teceu para o mundo, o avesso de minha sustentação. Cumpri na minha carne o milagre bonito da continuidade, e por que não dizer, da ressurreição gloriosa.Ao terminar o que ela havia começado, eu colocava os meus pés numa missão evangélica, semelhante à que os discípulos de Jesus precisaram cumprir para que o mestre não morresse na morte. Depois da pedra posta os passos precisam reencontrar a direção da vida. E foi o que eu fiz. O ritual de sepultamento terminou ali, na ressurreição que a máquina de costura me proporcionou.Há coisas que a morte não sepulta porque pertencem à vida eternizada. Minha mãe está em mim. E liturgicamente eu pude repetir: – Ela está no meio de nós!Terminado o paletó, abracei-o e dancei com ele uma valsa de despedida e de saudade!

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Amor, que é amor, dura a vida inteira. Se não durou é porque nunca foi amor.

Amor, que é amor, dura a vida inteira. Se não durou é porque nunca foi amor. O amor resiste à distância, ao silêncio das separações e até às traições. Sem perdão não há amor. Diga-me quem você mais perdoou na vida, e eu então saberei dizer quem você mais amou. O amor é equação onde prevalece a multiplicação do perdão. Você o percebe no momento em que o outro fez tudo errado, e mesmo assim você olha nos olhos dele e diz: "Mesmo fazendo tudo errado, eu não sei viver sem você. Eu não posso ser nem a metade do que sou se você não estiver por perto". O amor nos possibilita enxergar lugares do nosso coração os quais sozinhos jamais poderíamos enxergar. O poeta soube traduzir bem quando disse: "Se eu não te amasse tanto assim, talvez perdesse os sonhos dentro de mim e vivesse na escuridão. Se eu não te amasse tanto assim talvez não visse flores por onde eu vi, dentro do meu coração!" Bonito isso. Enxergar sonhos que antes eu não saberia ver sozinho. Enxergar só porque o outro me emprestou os olhos, socorreu-me em minha cegueira. Eu possuía e não sabia. O outro me apontou, me deu a chave, me entregou a senha. Coisas que Jesus fazia o tempo todo. Apontava jardins secretos em aparentes desertos. Na aridez do coração de Madalena, Jesus encontrou orquídeas preciosas. Fez vê-las e chamou a atenção para a necessidade de cultivá-las. Fico pensando que evangelizar talvez seja isso: descobrir jardins em lugares que consideramos impróprios. Os jardineiros sabem disso. Amam as flores e por isso cuidam de cada detalhe, porque sabem que não há amor fora da experiência do cuidado. A cada dia, o jardineiro perdoa as suas roseiras. Sabe identificar que a ausência de flores não significa a morte absoluta, mas o repouso do preparo. Quem não souber viver o silêncio da preparação não terá o que florir depois... Precisamos aprender isso. Olhar para aquele que nos magoou e descobrir que as roseiras não dão flores fora do tempo nem tampouco fora do cultivo. Se não há flores, talvez seja porque ainda não tenha chegado a hora de florir. Cada roseira tem seu estatuto, suas regras... Se não há flores, talvez seja porque até então ninguém tenha dado a atenção necessária para o cultivo daquela roseira. A vida requer cuidado. Os amores também. Flores e espinhos são belezas que se dão juntas. Não queira uma só. Elas não sabem viver sozinhas... Quem quiser levar a rosa para sua vida, terá de saber que com ela vão inúmeros espinhos. Mas não se preocupe. A beleza da rosa vale o incômodo dos espinhos... ou não.
Padre Fabio de Melo.

sábado, 20 de setembro de 2008

ALMA GÊMEA...

A crença de que a gente tem uma alma gêmea a ser encontrada, uma pessoa que vai nos completar e nos tornar inteiros não é mais verdadeira, sabia?
Não vale a pena mais pensar e viver assim. Encontrar a tal da metade, essa tal de alma gêmea é transferir para o acaso, para o outro algo que só depende de você!
Chega a ser injusto pensar que se deva acreditar nisso como sendo algo romântico a ser experimentado. Chega de depender de outras pessoas.
Chega!O fato é que amar é um privilégio e uma grande oportunidade de você se evoluir como pessoa.
Você é um ser absolutamente completo e nasceu dotado, preparado e motivado para experimentar todas as ferramentas que precisa para encontrar a felicidade, independentemente de pessoas, lugares ou o que quer que seja.
A felicidade é uma escolha pessoal, um dom que desabrocha...
Uma virtude e que precisa ser cultivada e descoberta.
Talvez um exercício diário... Uma busca que se faz só.
Você veio ao mundo para uma missão que só pode ser realizada por você mesmo e por isso nasceu único, exclusivo, nesse tempo, nesse país.
As pessoas que você escolheu para amar são companheiras de jornada. Mais do que isso: são presentes de Deus.
Mas não são, nunca serão a sua felicidade, a sua realização, a sua essência de vida!
Não seja injusto com você mesmo ao transferir para os outros a tarefa de ser feliz que é inteiramente sua, viu?
Nunca mais se confunda com a hipótese de ser feliz somente se uma determinada pessoa te amar. Jamais atribua a sua felicidade e a sua razão de existir a quem quer que seja!
Nunca perca a referência de seu real valor!
Você é insubstituível porque você é você!
Tudo o que você sente, vê, tudo o que entende por mundo é reflexo do que tem bem dentro do seu coração!
Você pode, sim, se tornar melhor através do amor, através da compreensão, da caridade.Não é o outro que te faz melhor.
É você mesmo que se permite crescer e ser melhor.
Agarre-se a você!
Seja o seu melhor amigo!

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Recordar - Rumi

"Sê como o Sol para a Graça e a Piedade.
Sê como a noite para encobrir os defeitos alheios.
Sê como uma corrente de água para a generosidade.
Sê como a morte para o ódio e a ira.
Sê como a Terra para a modéstia.
Aparece tal como és.
Sê tal como pareces.
Se pudesses libertar-te, por uma vez, te ti mesmo,o segredo dos segredos se abriria para ti.
O rosto do desconhecido, oculto além do universo,apareceria no espelho da tua percepção.
Na realidade, tua alma e a minha são o mesmo.
Aparecemos e desaparecemos um com o outro.
Este é o verdadeiro significado das nossas relações.
Entre nós, já não há nem tu, nem eu.
(...)
Há uma Alma dentro de tua Alma.
Busca essa Alma.Há uma jóia na montanha do corpo.
Busca a mina desta jóia.
Oh, sufi, que passa!
Busca dentro, se podes, e não fora.
No amor, não há alto nem baixo,má conduta nem boa,nem dirigente, nem seguidor, nem devoto,só há indiferença, tolerância e entrega."

domingo, 7 de setembro de 2008

Travessia -Discurso de Gabriel Chalita na A.P.L.




Na noite de ontem, a Academia Paulista de Letras viveu um momento glorioso: a posse do escritor Walcyr Carrasco.O evento ocorreu no Colégio Dante Alighieri, uma sessão gloriosa. Tive a honra de fazer a saudação de posse ao neo-acadêmico. Partilho com vocês o discurso que proferi: "José Renato Nalini - Presidente da nossa amada Academia Paulista de Letras. Senhoras Acadêmicas. Senhores Acadêmicos. Minhas amigas. Meus amigos.Travessia"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas ... Que já têm a forma do nosso corpo ... E esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares ... É o tempo da travessia ...E se não ousarmos fazê-la ... Teremos ficado ... para sempre ... À margem de nós mesmos..." (Fernando Pessoa) É de travessia que gostaria de falar esta noite. Noite gloriosa em que o escritor Walcyr Carrasco assume a cadeira número 14 que pertenceu ao saudoso poeta Cyro Pimentel, cuja travessia foi marcada por competência e elegância.Walcyr Carrasco é de Bernardino de Campos. Filho de João e de Ângela. O pai ferroviário, homem simples certa vez disse ao filho já adulto, desempregado, batalhando pela vida. "Filho, se precisar vá lá pra casa. Um prato de comida não vai faltar". Walcyr agradeceu comovido a simplicidade e o acolhimento do pai. Mas não precisou. Construiu sua casa com alicerce. A mãe Ângela tinha um pequeno bazar. Era conversadeira e sorridente. Lembranças que até hoje povoam a mente criativa do novelista.A travessia faz com que o fluxo seja inexorável. O cenário muda. As pessoas permanecem porque emocionam. Outras apenas vão - cumpriram talvez o seu ofício. De Bernardino de Campos à Marília. Dona Hélia, dona do bar da esquina, há pouco tempo deu a ele um enfeite de parede comprado no bazar da mãe. Em Marília, a lembrança do menino Joel que tinha uma deficiência mental. O que seria da sua travessia? O que seria da travessia daquele outro rapaz, tetraplégico, apresentado por um amigo, que escrevia e desenhava para sustentar a casa? Histórias que tocaram e influenciaram o adolescente Walcyr. Personagens que o ajudaram a compor para que o preconceito jamais tirasse da vitrine o doce sabor da diferença. O que seria de sua travessia? Em Monteiro Lobato, a inspiração para escrever e escrever muito. De vendedor de livro porta-a-porta a garçom nos Estados Unidos. De professor de português de uma americana cega ao Senhor das Seis, como ficou conhecido depois de tantos sucessos de audiência no horário mais difícil de se emplacar telenovelas.O rapto do garoto de ouro, uma adaptação do livro de Marcos Rey foi sua estréia como autor de teatro. Êxtase lhe rendeu o celebrado prêmio Shell. O Guarani, Filhos do Sol, Xica da Silva, O Cravo e a Rosa, A Padroeira, Chocolate com Pimenta, Alma Gêmea, Sete Pecados. O telespectador riu, chorou, torceu, vibrou, aprendeu. Assim são suas novelas e minisséries - uma homenagem à literatura que se populariza na grande mídia. Uma homenagem aos encontros cotidianos que ganham poesia com um texto leve, envolvente.Senhora das Velas, Pequenos Delitos e Anjo de Quatro Patas mostram, atestam sua boa travessia na literatura adulta. Para o público infanto-juvenil temas como preconceito, drogas, afeto fazem com que seus livros tenham enorme êxito. Em "A palavra não dita", o sonho de dizer "pai". A travessia seria muito mais leve se o amor não ficasse escondido em algum recôndito empoeirado.Cronista impecável traz seu humor aos fatos cotidianos de uma cidade imensa de problemas e de tipos, de casos e acasos. Na revista Veja é lido, comentado, respeitado.A travessia, prezados confrades e confreiras, é um desafio cotidiano. Fazer com que os talentos plantados pelo Jardineiro Primeiro floresçam é tarefa árdua que exige disciplina e integridade. Quem sabia ontem o que seríamos hoje? Quem ousa dar o desfecho da travessia?"Aconteceu que nessa noite Pedrinho ouviu a conversa e a referência à sua futura ação. Entrou a sonhar. Que fariam dele? Na fábrica, como o pai? Se lhe dessem a escolher, iria a engraxador. Tinha um tio no ofício, e em casa do tio era menor a miséria. Pingavam níqueis.Sonho vai, sonho vem, brota na cabeça do menino uma idéia, que cresceu, tomou vulto extraordinário e fê-lo perder o sono. Começar já, amanhã, por que não? Faria ele mesmo a caixa. Escovas e graxa, com o tio arranjaria." Monteiro Lobato traz essa narrativa de um pré-modernismo concreto. No conto de natal, o menino quer apenas o sonho de ser engraxate. Sonho pouco? Quem determina o que é pouco ou muito? Talvez seja a tal de felicidade que Aristóteles tanto proclamava como a verdade única e universal. Não a felicidade em si, mas a sua busca. A travessia!Guimarães Rosa, o escritor mineiro e universal que brincava com as palavras como um menino travesso, também atravessou."Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessiaO correr da vida embrulha tudo.A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa,sossega e depois desinquieta.O que ela quer da gente é coragem".Coragem não lhe falta, querido neo-acadêmico. Coragem de ousar em uma travessia repleta de holofotes e de penumbra. É no subsolo das suas emoções que surgem as narrativas que emocionam. É no submundo das suas dores que a dor partilhada faz com que entendamos mais da natureza humana. É nas inquietações que não o deixam, que se constroem e se destroem vidas. É esse o seu ofício. É essa a sua literatura.Seja bem-vindo, querido amigo, a esse bom convívio. Esta é a casa em que histórias de vida se misturam. São mulheres e homens que têm em comum a sina da palavra. São artífices de gerações diferentes que bebem e se embriagam sem pudor da língua portuguesa. Em nossos encontros, desencontramos. O escritor é um desconstrutor porque é um forte. Porque não tem medo. Na escrita ficcional, nos ensaios científicos, nos poemas que desnudam o que somos ou o que gostaríamos de ser, nas crônicas cotidianas todos nós atravessamos. Até quando? Quem sabe? Esse poder visionário não nos foi concedido. Fiquemos com o que ganhamos. O nosso galardão é a pena ou a tinta ou a caneta ou a máquina barulhenta e melancólica ou a nova tecnologia que não mata a velha inspiração. É isso o que recebemos, escritores todos. E recebemos para servir a uma causa. O nosso corpo já mudou. As roupas já foram trocadas porque há um novo corpo que nos habita. E haverá outro e depois outro e assim nos despediremos quando chegar o momento do encantamento final. Amigas e amigos. Esta é uma noite como qualquer outra em que algumas pessoas se reúnem para celebrar um homem menino que se torna imortal. Um homem na grandeza que a palavra lhe empresta, com alma vegetativa, sensitiva e racional. Um homem que delibera com presteza. E também um menino. Um eterno menino que brinca e que sonha. Um menino generoso que acredita no poder de transformar a vida das pessoas. E como Walcyr Carrasco é generoso! Mas isso fica para um outro encontro. Que haverá, com certeza. Porque a nossa travessia. A de nós todos, está longe de encontrar o seu porto final. Continuemos então. A palavra não pode parar. Nem a vida! "

PENSAMENTOS