"Os Educadores-sonhadores jamais desistem de suas sementes,mesmo que não germinem no tempo certo...Mesmo que pareçam frágeisl frente às intempéries...Mesmo que não sejam viçosas e que não exalem o perfume que se espera delas.O espírito de um meste nunca se deixa abater pelas dificuldades. Ao contrário, esses educadores entendem experiências difíceis com desafios a serem vencidos. Aos velhos e jovens professores,aos mestres de todos os tempos que foram agraciados pelos céus por essa missão tão digna e feliz.Ser professor é um privilégio. Ser professor é semear em terreno sempre fértil e se encantar com acolheita. Ser professor é ser condutor de almas e de sonhos, é lapidar diamantes"(Gabriel Chalita)

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quarta-feira, 15 de abril de 2009

O CARRINHO - RUBEN ALVES

Ganhei um carrinho de presente. Coloquei-o sobre minha mesa de trabalho. Olho para ele quando escrevo. Ele me faz pensar. Não são todos os objectos que têm esse poder de fazer pensar. A caneta, o agrafador, a lâmpada, a cadeira, objectos à minha volta: eu os uso automaticamente; eles não me fazem pensar.Mas o carrinho é diferente. Bastou que eu o visse a primeira vez para ficar emocionado. Eu o reconheci como morador do mundo das minhas memórias. Ele me fez lembrar e sonhar. Meu pensamento começou a voar. O que eu vejo nele não é nada comparado àquilo que ele me faz imaginar.Sonho. Os teólogos medievais diziam que o sacramento é um sinal visível de uma graça invisível. O carrinho é um sacramento: sinal visível de uma felicidade adormecida, esquecida. Volto ao mundo da minha infância.Uma lata de sardinha.A tampa foi dobrada inteligentemente, e assim se produziu a capota. As rodas foram feitas de uma sandália havaiana que não se prestava mais a ser usada. Os eixos, dois galhinhos de arbusto. E ei-lo pronto! Um carrinho, construído com imaginação e objectos imprestáveis. Fosse um carrinho comprado em loja, e eu nada pensaria.Seria como o meu lápis, o meu grampeador, a minha lâmpada, a minha cadeira. Mas basta olhar para o carrinho para eu ver o menino que o fez, menino que nunca vi, menino que sempre morou em mim. Fico até poeta: faço um hai-kai:uma lata vazia de sardinha,uma sandália havaiana abandonada:um menino guia seu automóvel...Sei que o menino é pobre. Se fosse rico teria pedido ao pai, que lhe teria comprado um brinquedo importado. Dinheiro é um objecto que só dá pensamentos de comprar. A riqueza, com frequência, não faz bem ao pensamento. Mas a pobreza faz sonhar e inventar. Carrinho de pobre tem de ser parido.A professora deve ter notado que ele estava distraído, ausente, olhando o vazio fora da janela. Falou alto para chamar sua atenção. Inutilmente. Ela não percebeu que distracção é atracção por um outro mundo. Se os professores entrassem nos mundos que existem na distracção dos seus alunos eles ensinariam melhor. Tornar-se-iam companheiros de sonho e invenção.Penso que o menino devia andar lá pela favela, olhos atentos, procurando algo, sem saber direito o quê. Até que deram com a lata de sardinha jogada no lixo. Foi um momento de iluminação. A lata de sardinha virou uma outra coisa.O menino virou poeta, entrou no mundo das metáforas: isto é aquilo. Ele disse: «Esta lata de sardinha é o meu carro...» Fez aquilo que um fundador de religiões fez, ao tomar o pão e dizer que o pão era seu corpo. E a lata de sardinha ganhou um outro nome, virou outra coisa. O menino, sem saber, executou uma transformação mágica. Todo ato de criação é magia. O menino dobrou a tampa e se sentou ao volante.Faltavam as rodas. Pensei que muitas vezes me defrontei com problema semelhante, quando menino. Mas na minha infância a solução já estava dada. O leite vinha em garrafas bojudas de boca larga, que eram fechadas com tampas metálicas semelhantes às tampinhas de cervejas, só que muito maiores. Era só pegar as tampas, e o problema estava resolvido.
Mas os tempos são outros. O menino teria de fazer suas rodas, se quisesse andar de automóvel. Se tivesse uma serra tico-tico poderia fazer rodinhas de um pedaço de compensado abandonado. Mas é certo que tal ferramenta ele não tinha.Pois se tivesse, teria feito. Suas ferramentas: uma faca, subtraída da cozinha, um prego para fazer os buracos, e uma pedra, à guisa de martelo. O material deveria ser dócil às ferramentas que possuía. Seria fácil fazer rodas de papelão. Mas as rodas se desfariam, depois de passar pela primeira poça de água. Seus olhos e pensamento procuram. E aquilo que calçara pés se transformou em calçado de automóvel.Quatro buracos na lata de sardinha, dois galhinhos de árvores e ei-lo pronto: o carrinho!
O menino sabia pensar. Pensava bem, concentrado. É sempre assim. Quando o sonho é forte, o pensamento vem. O amor é o pai da inteligência. Mas sem amor todo o conhecimento permanece adormecido, inerte, impotente. O menino e o seu carrinho resumem tudo o que penso sobre a educação.As escolas: imensas oficinas, ferramentas de todos os tipos, capazes dos maiores milagres. Mas de nada valem para aqueles que não sabem sonhar. Os profissionais da educação pensam que o problema da educação se resolverá com a melhoria das oficinas: mais verbas, mais artefatos técnicos, mais computadores (ah! o fascínio dos computadores!).Não percebem que não é aí que o pensamento nasce. O nascimento do pensamento é igual ao nascimento de uma criança: tudo começa com um acto de amor. Uma semente há de ser depositada no ventre vazio. E a semente do pensamento é o sonho. Por isso os educadores, antes de serem especialistas em ferramentas do saber, deveriam ser especialistas em amor: intérpretes de sonhos.O menininho sonhava. Como Deus, que do nada criou tudo, ele tomou o nada em suas mãos, e com ele fez o seu carrinho. Imagino que, também como Deus, ele deve ter sorrido de felicidade ao contemplar a obra de suas mãos...

Texto: Rubem Alves, in Pais & Filhos

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