Estimado Presidente da Academia Brasileira de Educação,
Professor Carlos Alberto Serpa de Oliveira.
Prezados Acadêmicos,
Autoridades,
Senhoras e Senhores,
Eis me aqui para cumprir o meu oficio de gratidão e renovar minha profissão de amor à educação.
Gratidão à generosidade das senhoras e dos senhores que me permitem comungar deste espaço e aprender nesta ágora contemporânea.
A Ágora era o palco da liberdade. O palco do compromisso, em que a hermenêutica e a heurística talhavam os grandes homens. Discurso sem interpretação dos fatos e sem preocupação com a verdade, era demagogia. A ética ia tomando forma discursiva e embelezava as relações sagradas de ensino e aprendizagem. A peripatética socrática, a academia platônica e o liceu aristotélico constituíam a trilogia clássica da Paidéia. O sonho da integralidade na profissão de amor à cidade ou, por que não, à humanidade.
Eram professores esses sábios. Professavam no antropocentrismo nascente a fidelidade aos valores maiores. Sócrates foi condenado à cicuta por persistir em sua profissão. O preconceito roubou-lhe a vida.
A ausência de conhecimento pode gerar o preconceito e ainda o aprisionamento. Um repertório ampliado é um mundo ampliado. São pontes que se abrem como uma dialética continuada. É o conhecimento gerando a liberdade.
Liberdade era o sonho do patrono da cadeira de número 34, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, autor do Hino à Bandeira, o poeta Olavo Bilac. Parnasiano, e também romântico, o príncipe dos poetas brasileiros sussurrava sonetos confessionais:
"Ora (direis) ouvir estrelas! CertoPerdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,Que, para ouvi-las, muitas vezes despertoE abro as janelas, pálido de espanto...
E conversamos toda a noite, enquantoA via-láctea, como um pálio aberto,Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: "Tresloucado amigo!Que conversas com elas? Que sentidoTem o que dizem, quando estão contigo?"
E eu vos direi: "Amai para entendê-las!Pois só quem ama pode ter ouvidoCapaz de ouvir e de entender estrelas."
Repito:
"Só quem ama pode ter ouvidoCapaz de ouvir e de entender estrelas."
Minha antecessora, a saudosa Esther de Figueiredo Ferraz, tinha ouvidos assim, era capaz de ouvir e de entender estrelas. E, ao ouvi-las e entendê-las, construiu uma notável trajetória de mulher brasileira. Pioneira, numerosas vezes. Foi a primeira mulher a assumir a cátedra na tradicional Faculdade de Direito das Arcadas. A primeira mulher a atuar no tribunal do júri. A primeira a ser reitora de uma universidade, a Universidade Presbiteriana Mackenzie. Primeira a ser, também, Ministra de Estado. Mas a sua glória maior não foi essa, como ela confessou ao tomar posse, em 1971, no cargo de Secretária da Educação do Estado de São Paulo:
[...] o de que me envaideço não será, podem crê-lo, haver atingido o ápice dessa carreira no desempenho de minhas atividades universitárias, mas sim em tê-la iniciado por onde a iniciei, numa pequena classe do Grupo Escolar de Santo Amaro, onde meninos descalços, de roupas remendadas e umedecidas pela garoa do planalto, tiritando de frio ou cheirando a suor, disputavam o privilégio de enfeitar com uma flor (provavelmente arrancada ao jardim da pracinha fronteira), a minha tosca mesa de trabalho.
Sua profissão era a de uma mulher livre. Livre das arrogâncias que muitas vezes o poder empresta aos desavisados. Livre das síndromes da usurpação de privilégios de cargos que enfeiam a travessia
Conheci Esther em São Paulo. Frequentei atento as suas histórias. Privilegiado, acompanhei, muitas vezes, a prosa elegante de nossa mestra. Assim Miguel Reale a saudou em nossa Academia Paulista de Letras:
Nenhuma profissão, tanto como a docente, tem a virtude de projetar quem a exerce muito além de suas próprias obras, graças à aventura de vaidosamente poder compartilhar das realizações e triunfos de seus discípulos. É claro que as criações, no campo literário, artístico ou científico, podem perpetuar, por menor ou maior tempo, o nome de seus autores, mas se trata de uma projeção no plano objetivo do processo cultural, enquanto o exercício do magistério transcende a pessoa do professor numa linha de marcada subjetividade mediante os valores alcançados por seus antigos alunos.
Quão doce prazer sente o mestre pelas conquistas de seus alunos. Não há professor que não se emocione ao vê-los galgando o cume do saber e do fazer.
O primeiro ocupante desta cadeira foi o também Ministro Pedro Calmon Muniz de Bittencourt. Nascido em Amargosa, Bahia, foi professor, reitor da Universidade do Brasil, Ministro da Educação e Saúde do governo Dutra, orador impecável. Foi presidente da Academia Brasileira de Letras, tendo publicado mais de 50 obras nas áreas de biografia e literatura histórica, história e direito. Doutor honoris causa das Universidades de Coimbra, Quito, Nova Iorque, San Marcos e da Universidade Nacional do México. Dentre outros, escreveu, História de Dom Pedro II, em 5 volumes; História do Brasil na poesia do povo e Vida e amores de Castro Alves.
Castro Alves, o poeta da liberdade, ou como ele mesmo dizia, poeta da musa libérrima. Membro da escola de morrer cedo, em Navio Negreiro orou:
Auriverde pendão de minha terra,Que a brisa do Brasil beija e balança,Estandarte que a luz do sol encerra,E as promessas divinas da esperança...Tu, que da liberdade após a guerra,Foste hasteado dos heróis na lança,Antes te houvessem roto na batalha,Que servires a um povo de mortalha!...
Nasci em uma cidade pequena no interior de São Paulo, Cachoeira Paulista. Desde a infância, eu exercia o meu magistério, aos meus avós, em um quadro verde, presente de algum aniversário. Era inquieto quando os via quietos. Queria atenção. Afinal, aquele era um momento de celebração.
Nas primeiras aulas, nas escolas públicas da minha cidade, intuitivamente, aplicava Paulo Freire:
Sou professor a favor da esperança que me anima apesar de tudo. Sou professor contra o desengano que me consome e imobiliza. Sou professor a favor da boniteza de minha própria prática, boniteza que dela some se não cuido do saber que devo ensinar...
Os meus alunos não eram tábulas rasas. Eram condores à espera de oportunidades para as alturas. Nas faculdades em que lecionei e leciono, os desafios continuam. Trocas de impressões, partilhas de razões ou meras idéias que vão formando uma teia. Somos cúmplices de um tempo em construção. Estamos em construção, pois essa é a razão da liberdade. Somos livres para restaurar as preciosidades internas que foram rasuradas com ou sem o nosso consentimento.
É livre quem deixou de ser escravo de si mesmo, ensinava Sêneca, insistente nesse percurso doloroso que se dá no interior humano.
Aproveito esse conceito para professar minha indignação contra qualquer tipo de preconceito. O tosco, horrípilo preconceito que diminui e arranca do outro a esperança. A educação e o preconceito não frequentam os mesmos altares.
No livro do Eclesiástico, a fonte para a derrocada do preconceito:
Quando eu era ainda jovem, antes de ter viajado, busquei abertamente a sabedoria na oração: pedi-a a Deus, no templo, e buscá-la-ei até o fim da minha vida.
Ela floresceu como uma videira precoce e meu coração alegrou-se nela. Meus pés andaram por caminho reto: desde a minha juventude tenho procurado encontrá-la. (Eclo 51, 18-20)
Um pouco mais adiante, prossegue:
Desde o inicio, graças a ela, possuí o meu coração (Eclo 51, 28a).
Graças à sabedoria é possível possuir o próprio coração. O que não é tarefa simples. Embriagamo-nos de falsas impressões. Desprezamos a verdade e julgamos o outro com meras opiniões. Preconceito. O que me dá o direito de ostentar uma postura arrogante? O educador é um servidor. E para isso tem de ser sábio.
Einstein acreditava no trabalhar em liberdade para a criação grande e inspiradora e Gandhi explicava que A liberdade não tem qualquer valor se não inclui a liberdade de errar.
É a morte do preconceito, meus amigos. Insisto, porque lamento os dogmatismos acentuados que separam os que sabem dos que não sabem, os que têm dos que não têm; os que são dos que não são. Ora, quanta ignorância! É inimaginável que depois de tantas descobertas não percebamos a heterogeneidade das inteligências. Trata-se de oportunidade apenas. É dar o bastão ao corredor e ensinar a ele o traçado e olhá-lo com a confiante ternura. E é isso. A boa educação é moeda de ouro, em toda parte tem valor, afirmava o padre dos sermões, Antônio Vieira.
Senhoras acadêmicas, senhores acadêmicos.
Rousseau era um gênio autodidata do Iluminismo. Perdeu a mãe cedo, o pai não cuidou dele. E ele não cuidou dos cinco filhos que teve, abandonando-os em um orfanato. Entrementes as agruras de uma vida tumultuada, escreveu uma das maiores obras da psicologia do desenvolvimento, Emílio ou da educação.
Na obra, Rousseau constrói uma experiência educacional imaginária para mostrar que era possível criar um indivíduo que pudesse agir com retidão independentemente da ordem política ilegítima, das escolas e faculdades irremediavelmente corruptas. Para isso, ele retirava professor e aluno da sociedade e construía um enfoque consistentemente naturalista para a educação de Emílio.
Tudo é bom quando sai das mãos do Autor das coisas; tudo degenera nas mãos do homem.
Essa assertiva mostra o quanto Rousseau prolatava a bondade original e, ao mesmo tempo, a corrupção que a sociedade das competições, e não das cooperações, gerava. O bem é natural.
É de Kant a preciosidade:
Como então buscar a perfeição? Onde fica a nossa esperança? Na educação e em nada mais.
Filósofo alemão, sintetizador do empirismo e do racionalismo, é um dos fundadores da filosofia contemporânea. Embora não tenha escrito uma obra especificamente sobre educação, Kant faz um paralelo entre a esfera da natureza e a esfera da moralidade e concebe a educação como um processo que une as duas. O objetivo último da educação deveria ser a formação do caráter moral ou, em outras palavras, a admiração e a execução de um ato íntegro. A criança não é boa nem má, para Kant. A criança é amoral. Não imoral. Sua amoralidade deriva do fato de não saber o que é certo ou errado. Não ter condições de discernir o que recebe de casa e da escola. É como se a criança não tivesse condições de peneirar as sujeiras que lhe são lançadas. E reproduz, assim, os equívocos dos pais e professores. Kant sonha com uma educação que dê autonomia para que, em toda a vida, os ditames morais definam os passos humanos. É uma lei universal que se apreende e se constrói.
Da retórica à práxis. As reflexões históricas sobre educação são mais do que conhecidas. O percurso das escolas de ontem até aqui, também. Desde a educação tribal, passando pelo Egito, Macedônia, Grécia; freqüentando as escolas medievais, renascentistas ou contemporâneas, muito já se falou sobre os valores da educação na formação de um homem livre. Teorias divergiram quanto à forma, mas creditavam sempre à educação o resultado do sucesso humano.
Ao ingressar nesta Academia, quero apregoar alguns valores que a minha modesta experiência docente e de gestor público me ensinou.
Defendo a escola de tempo integral para as redes públicas visando diminuir a distância entre aqueles que têm e aqueles que não têm. Em um país, com a complexidade econômica e social como o nosso, é difícil imaginar que em casa os alunos haverão de completar os seus estudos.
Defendo que o currículo privilegie habilidades cognitivas, sociais e emocionais. O aluno é complexo e não pode ser tratado como um mero repetidor de conteúdos e fórmulas desprovidas de significado. Defendo a obrigatoriedade do Ensino Médio. O jovem precisa ser cuidado para que seu potencial se reverta em benefício próprio e em benefício do país. Não se combate violência com violência. Combate-se com inteligência. É preciso, também, trazer a família para a escola. O lar é o primeiro Liceu. É o espaço privilegiado em que as emoções começam a ser organizadas.
A didática tem de ser condizente aos alunos acostumados à tecnologia e à velocidade. As atenções são outras. A arquitetura da sala de aula tem de privilegiar as diferenças, sem a presunção incorreta de que os alunos aprenderão as mesmas coisas, ao mesmo tempo. O encantamento das letras, das histórias que perpetuam em livros o existir humano, não pode ser substituído por um conjunto de regras que dissociam saber de sabor. Essas palavras de mesma origem incendeiam os aprendizes com calor e luminosidade. A educação é convidada a transpor os muros e ditar comportamentos na urbe. A civilidade do brasileiro, a cordialidade dos filhos desta terra, como estudada por Sérgio Buarque de Holanda, não podem ser trancafiadas em individualismos e violências. É preciso significar as teorias com comportamentos adequados.
Defendo os mestres. As professoras e os professores que se constituem como a alma do processo educativo. Não são as máquinas, nem as antigas nem as modernas, que formarão as pessoas. Não são as construções maiores e mais arrojadas que desenharão o molde das ações humanas. Os que professam na vida o amor ao outro é que farão a diferença. Os alunos precisam de vínculo, carecem de referenciais. E aí estão os mestres cumprindo o seu ofício.
Se há uma glória a que posso me atribuir sem receios é a de ter, durante os quase cinco anos em que estive Secretário em São Paulo no competente governo de Geraldo Alckmin, comungado dúvidas e certezas com os professores. Construímos uma rede de respeito. Trocamos idéias, cedemos informações, atravessamos à outra margem para conversar com mais vagar. Renunciamos dogmatismos e crescemos. Entro com tranqüilidade em uma escola e reverencio os seus professores. Há falhas? Certamente. Há descaso dos que deveriam ensinar? Como em todas as profissões. Não julguemos o todo pelas partes. É de Aristóteles o axioma de que a generalização é o primeiro caminho para a injustiça. Sejamos justos. Nas salas de aula deste país, faltam políticas públicas eficientes e continuadas e sobram sonhos. Alguns agentes públicos ousam destruir os feitos de seus antecessores com o intento egóico de fincar uma bandeira. Tosca ventura desrespeitosa. Somos ocupantes provisórios de espaços definitivos. Nada de personalismos. É de personalidade que precisamos. Partir em busca da liberdade de fazer livre aquele que chega.
Procuro ser educador em tudo o que faço. Publico livros sobre biografias de pessoas fascinantes para aprender com elas. Fabrico ilusões em romances e contos para engendrar histórias de vida. Vivifico minhas verdades em livros infanto-juvenis. Amo a filosofia como quebra continuada de paradigmas. E sobre ela, escrevo. Sou um discípulo da literatura como história dos sentimentos. Sentimentos que são lapidados em outras arenas. Educo na televisão e no rádio.
A Comunidade Canção Nova educou-me desde pequeno com seu magistral fundador Monsenhor Jonas Abib e ampliou minha voz e imagem para levar o que sei e o que estou descobrindo a milhões de lares. Só me pedem fidelidade à dignidade humana, ao exercício continuado de formar mulheres e homens novos para um mundo novo. Ou então mulheres e homens educados, livres. Quão doce é a liberdade! Dela nasce o gosto pela ventura da vida. Sem gaiolas, mesmo as de ouro. Sem medo do medo. Brincantes com as possibilidades. Imersos em valores corretos e caminheiros.
A educação é o estandarte da liberdade. Ela faz transmutar a perspectiva de vida. É por isso que os pais devem se preocupar em deixar esse legado aos seus filhos.
Meu pai não está aqui. Mas sua imagem percorre os meus conceitos. Ele habita em mim com sua tenra expressão de gentileza. Soube compreender as minhas escolhas e aplaudir minhas decisões. Sem conhecer correntes pedagógicas, inspirou-me a compreender os tempos e os espaços alheios. Minha mãe conformou-se com minha decisão de trocar o seu sonho de um filho médico pelo discurso inquieto do professor.
Completo este ano minhas bodas de prata do magistério. Tenho 40 anos. Comecei a dar aulas em escolas aos 15. E não estou cansado. Ao contrário. Sinto um gosto de novidade cada vez que encontro uma nova turma. É o desafio da ação na sedução. São eles os novos convivas ao banquete do saber. É preciso entender o que servir e como servir para que voltem esperançosos. Não quero vê-los subnutridos nem obesos. É o meio-termo que educa melhor. E mais, longe de mim eternizar as minhas verdades em mentes alheias. É dialogal nossa profissão. Quebramos e construímos. Rasgamos e emendamos. Sem pestanejar. E tudo isso com a certeza de que nossa jornada não será vã:
Só há uma coisa neste mundo à qual vale a pena dedicar toda a sua vida. É a criação de mais amor entre os povos e a destruição das barreiras que existem entre eles, ensina Tolstoi.
Acredito que a aspiração dá sentido às nossas escolhas. Não é possível voar sem ter antes o destino. É no mínimo incauta a embarcação que parte sem rumo.
Eduquemos para a competência, a coragem e o amor. Essa é a razão da nossa existência e a manifestação da nossa essência. O amor é a estrela desenhada no firmamento que pode ser avistada de qualquer parte. Basta apenas uma educação que nos ensine a olhar para o alto e prosseguir.
Professor Serpa, em seu nome, agradeço, mais uma vez, a esta douta academia. Conhecemos-nos e nos encontramos. Sua gentileza e generosidade enfeitam sua profissão. Em cada espaço, o respeito. E, no respeito, o encantamento.
Recebi desta academia o prêmio de Educador do Ano de 2004. Recebo, hoje, a grata satisfação de freqüentá-la como membro. O fardão é a responsabilidade que assumo com humildade e o colar, o enfeite para continuar a entoar os acordes da pedagogia do amor.
Minhas amigas e meus amigos,
Termino com gratidão esta minha chegada. Agradeço a Deus pelos talentos que abundantemente Ele derrama sobre nós; agradeço a Ele os milagres cotidianos, singelos, que às vezes nem temos tempo de reparar. E, ainda, o dom da cortesia. Agradeço aos meus amigos que aqui e em outras arenas emprestam conhecimento e poesia à minha vida.
Poetizemos, enfim, com Bilac: Amemos. As estrelas estão por aí para serem ouvidas e compreendidas. Amemos!
Obrigado,
Gabriel Chalita