"Os Educadores-sonhadores jamais desistem de suas sementes,mesmo que não germinem no tempo certo...Mesmo que pareçam frágeisl frente às intempéries...Mesmo que não sejam viçosas e que não exalem o perfume que se espera delas.O espírito de um meste nunca se deixa abater pelas dificuldades. Ao contrário, esses educadores entendem experiências difíceis com desafios a serem vencidos. Aos velhos e jovens professores,aos mestres de todos os tempos que foram agraciados pelos céus por essa missão tão digna e feliz.Ser professor é um privilégio. Ser professor é semear em terreno sempre fértil e se encantar com acolheita. Ser professor é ser condutor de almas e de sonhos, é lapidar diamantes"(Gabriel Chalita)

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quarta-feira, 3 de outubro de 2007

MULHERES DE ÁGUA


Gabriel Chalita é um predestinado. Talento precoce, começou a escrever ainda criança e não parou mais. Tem uma facilidade enorme para transmitir emoções e para descomplicar. Não é por acaso que seus livros de ética e filosofia são editados em tiragens que só encontram paralelo no exterior e suas obras vendem de verdade. Há muitos escritores que praticamente escrevem para si mesmos ou para um reduzidíssimo grupo de leitores. Não é o que ocorre com ele. É um sucesso editorial reconhecido. Prende quem o lê desde as primeiras páginas e consegue do leitor uma fidelidade que chega à veneração. Seu livro "Mulheres de água" contém vinte e um contos, todos com a temática feminina. Um filósofo-educador só poderia bem penetrar na alma das mulheres. Por que "mulheres de água"? É Chalita quem responde: são as "mulheres que preenchem. E que, como a água, movimentam, purificam, renovam, saciam".
As mulheres dos contos são reais. Todas elas existem. Desfilam pelo livro, muita vez com alguma liberdade literária para não se adivinhar o RG e o CPF. Mas quem pode duvidar da concreção daquela que perdeu marido e filho num acidente aéreo? O livro é de janeiro de 2007, a segunda e maior tragédia da aviação brasileira ainda não ocorrera. Quantas mulheres não se desesperam como a bailarina que não abre a porta? Há muitas portas cerradas à paixão, ao convívio, à partilha. Corações trancados por dentro e cujas chaves são lançadas fora. Nunca mais se abrirão. Mãe tem a vocação do sofrimento. Bem caracterizado no conto "Atende", em que o celular do filho não responde e a genitora aflita antecipa tragédias e se desespera, como é próprio das mães possessivas. Todos conhecem alguém como a Anésia com esperanças de se casar, embora já na categoria "solteirona". Com algumas manias, embora não tão estranhas como respingar o lençol com licor de amora. Mas ainda convictas de que seu dia chegará. Se já chegou para tantas outras, por que não para ela, donzela tão prendada?
Frustração de amor é sentimento essencialmente feminino. Chalita o reconstitui com fidelidade no conto "Ensaio". A ilusão passa a preencher a vida de quem permaneceu sozinha após capitular à sedução mais pueril. Também muito antes da "Bebel" de Gilberto Braga em "Paraíso Tropical", Chalita coloca a "categoria" no vocabulário da mulher trocada pela mais jovem. Convicta de que "homem é bobo" por se deixar levar por uma moça que se diz "praticamente virgem". Maria das Dores é uma personagem mais comum do que se possa pensar. A esquisita, imensamente só. A considerar todos os outros esquisitos e a se avaliar como apenas diferente. Quieta e inquieta a um tempo. Enfim, personagem freqüente numa sociedade em crise. Sociedade heterogênea, em que muitos valores longevos sobrevivem e colidem com o advento de outros e, mais ainda, com a autêntica falta de valores. Exercícios lúdicos tais como "Sim e não" descrevem o pulsar perplexo do amor que atrai e machuca. Com lugar para o filósofo a ponderar que o tempo, no qual confiara para corrigir os desleixos, agora abandonara a amante: "Tempo! Onde está o tempo agora, que não me socorre?". Encontrei no livro até uma pequena concessão à ecologia. Pois Goretti "toma um banho ligeiro. Não é de bom-tom ficar horas embaixo do chuveiro, principalmente em tempos de racionamento de água".
Não vou falar de todos os contos. Mesmo porque, o melhor mesmo é desfrutar deles. Sorvê-los com a delícia de uma leitura fácil, atraente e sedutora. Daquelas que a gente prolonga, para não terminar. O ingrediente de todas as narrativas é uma experiência que se diria adquirida num labor psicanalítico ou na vivência do confessionário. Como o autor não é psicanalista, nem sacerdote, há de se reconhecer nele a expressão de excepcional talento. A intimidade com a índole feminina é missão reservada a poucos. O livro faz lembrar Chico Buarque de Holanda, o principal intérprete da alma das mulheres em canções como "Carolina" e outras inominadas, mas que obtiveram lugar definitivo na memória consciente do Brasil musical.
A introspecção e o diálogo interior são machadianos e o toque de sensualidade situa-se entre a ambigüidade de Eça e o desnudar-se de Nelson Rodrigues. Mas escrever sobre mulher e, muita vez, sob o ângulo feminino, é privilégio dos bons. Lúcia Castello Branco, autora de "O que é Escrita Feminina", encontra essa enunciação em Proust, em Guimarães Rosa e em James Joyce. Por sinal que Flaubert, quando indagado sobre quem era Madame Bovary, respondeu: "Madame Bovary sou eu". Assim como Aurore Dupin assinava seus romances como George Sand, é o talento que distingue a boa obra, não o sexo do escritor ou da personagem.
Como conheço bem Gabriel Chalita e tenho o privilégio de privar de sua amizade, sei que inúmeras outras figuras poderiam adentrar a essa galeria literária. Há um infinito arsenal de tipos femininos prontos a serem perpetuados na criação do poeta, filósofo, ético, ensaísta e agora contista. Ele mal iniciou a incursão por esse território mágico, repleto de surpresas e de encantamentos que é a psicologia da mulher.
Após as "Mulheres de Água", aguardemos as "Mulheres de Fogo", "Mulheres de Terra" e "Mulheres de Ar" ou da atmosfera. Apenas para permanecermos nos quatro elementos, tão gratos aos primeiros filósofos, no terreno já palmilhado por Chalita com erudição e airosidade. A instância líquida, certamente, não foi suficiente para esgotar a inspiração e a criatividade do benjamin da Academia Paulista de Letras.



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José Renato Nalini é desembargador do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, autor de "A Rebelião da Toga", Editora Millennium, 2006.

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